Tenho
notado de uns tempos para cá, como espectadora, dois tipos de espetáculo que
fogem aos padrões dramáticos. Um deles já nasce como acontecimento, dada sua
contundência, sua clareza, sua potência comunicativa. É como se estivessem
prontos, em estado de latência, esperando somente que algumas conjunções se
fizessem para que viessem à luz, e cumprissem seu destino já determinado. Nesse
tipo de espetáculo todas as transgressões parecem cabíveis e a nossa posição de
espectadores, embora alterado o esquema de séculos de frontalidade e aparente
passividade, adequa-se até com certa facilidade a elas.
Já o
outro tipo congrega um número bem maior de experiências, e se refere a
trabalhos que se situam entre a negação de modelos consagrados e a conquista de
novos paradigmas que ainda não estão bem claros. Creio que é desses espetáculos
que parte do público diz “não entendi nada”, “teatro contemporâneo é tudo
assim, estranho”, sem compreender a função que eles exercem na renovação
constante da linguagem.
Nessas
ocasiões, o espectador também é convidado a rever seu papel. Se até hoje muitas
(e ótimas) produções mantêm a prática de entreter o público, oferecendo a ele
um tipo de fruição que vai ao encontro de suas referências e, por isso, tende a
reafirmá-las, outras há que subvertem as expectativas, que estimulam à
ampliação das referências. Fazem isso jogando com o corpo do espectador, seus
sentidos, trabalhando com sonoridades mais do que com o sentido das palavras
etc.
Enfim,
propõem um novo pacto entre cena e plateia que, mesmo não se instalando de
forma contundente e clara como os espetáculos do “primeiro tipo”, cumprem a
missão de testar novas possibilidades de relação e conformação.
Ulisses
Molly Bloom – dançando para adiar situa-se, a meu ver, neste segundo caso. A coragem
e a ousadia de trazer para a cena aspectos da famosa obra de James Joyce aponta
caminhos para outras propostas do gênero. Um texto que representa as primeiras
tentativas de modernização do romance não poderia ser adaptado para o teatro
simplesmente com base em seu enredo. Seria preciso que também a linguagem
teatral fosse confrontada. Confiaríamos ainda às palavras e ao raciocínio
lógico as chaves do sentido? Limitaríamos a odisseia do personagem ao espaço
cênico fechado, convencional? O público seria observador/ouvinte ou companheiro
de viagem? Dublin seria uma paisagem da memória, da imaginação ou da composição
com a cidade aqui-agora da narrativa? Ulisses e sua amada atravessam os tempos
e nos alcançam, com sua coreografia de palavras e gestos, convidando-nos a
tentar compreender o nexo das coisas – incluído aí o próprio teatro.
Assisti a
uma das primeiras apresentações do trabalho, em Suzano, São Paulo. Ainda havia
ajustes a fazer em relação ao volume de voz, à clareza de algumas falas, ao
ritmo, à definição de alguns estados, por exemplo. Talvez com o tempo o grupo
possa envolver um pouco mais o público, se não fisicamente, ao menos na criação
de uma atmosfera mais intensa de cumplicidade para com o personagem que vaga.
Gosto de pensar que eu também, como espectadora, empreendi minha odisseia ate
chegar ao teatro. Gosto de pensar o espetáculo como um ponto significativo na
trajetória do meu dia. Um ponto que irei conservar na memória e poderei
recapitular para melhor compreender, como faz Ulisses.
Parabéns
à Cia Estrela d'Alva pela reunião de tantos e tão bons profissionais em torno
do projeto. Haveria muito mais a dizer. Sempre. Porém, fecho este breve
comentário falando do empenho dos atores. É tocante acompanhar tão de perto o
seu esforço. Vejo-os como duplos de seus personagens – Lígia e Paulo
perseguindo Molly e Ulisses, incansavelmente. Eles escapam, se escondem,
enganam os intérpretes. Talvez Joyce faça isso conosco também: ofereça pistas
que logo são retiradas ou mostram-se falsas. O fato é que os atores estão
também esgotados ao fim do espetáculo-jornada, e eu vejo que a busca ainda vai
continuar por muito tempo. Essa, dos artistas que querem propor novas maneiras
de fazer e fruir o teatro.
Adélia Nicolete
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